quarta-feira, 27 de março de 2019

Os sujeitos no universo da escola - Verónica Edwards


Introdução
“(...) não basta hastear novamente as velhas crenças; não é solução acreditar agora em seus contrários; é necessário voltar sobre o que acreditávamos conhecer, questionar o óbvio, voltar sem trégua sobre nosso senso comum.” (p. 11)

"O sujeito, aluno e professor, participa da estruturação da forma de conhecimento que se transmite na classe e nas relações que ali se estabelecem. O problema, então, fica assim formulado: a participação do sujeito na constituição da situação escolar e ao mesmo tempo a constituição do próprio sujeito por esta participação, mediado pelos conhecimentos escolares. A relação entre os sujeitos e o conhecimento se transformou no eixo principal de análise.” (p. 12)


Em geral, os alunos são considerados o elemento subalterno da situação escolar.  Da perspectiva que considera a escola como aparelho ideológico do Estado, o professor é o portador e o transmissor da ideologia dominante. É o professor que realiza tarefa tão fundamental.

Perspectiva do aluno, como sujeito. Recuperar a visão dos alunos da situação escolar, considerando-os, tanto quanto os professores, sujeitos sociais.




O sujeito é social desde que nasce, constitui-se sempre em relação a outros, mediado pelas significações sociais de seu mundo. Se o sujeito se constitui no social desde que nasce, não se pode considera-lo uma tabula rasa, como se costuma fazer.

“(...) a ideia de um sujeito que preexiste à sua história, à sua própria educação.” (p. 14)

“(...) supõe-se também a ideia de um sujeito que é moldado pelo meio ao interiorizar a norma naturalmente, sem oposição ou reelaboração alguma de sua parte. Recebe o que lhe é transmitido na escola e se adapta aos valores e à cultura de uma dada classe social, inculcados na escola por intermédio da violência simbólica. Mistifica-se o poder da inculcação do conteúdo, usualmente em seu caráter ideológico; e do sujeito criança como tabula rasa passa-se a conceber o sujeito adulto como suporte de estruturas ou, no mesmo sentido, portador de uma ideologia. Estabelece-se uma relação dicotômica entre sujeito e mundo e se atribui ao sujeito uma situação passiva nessa relação.” (p. 14)

“O sujeito está determinado por suas condições cotidianas de vida, pela classe à qual pertence, pelo grupo imediato através da qual pertence a ela, pelo lugar que ocupa na divisão do trabalho, por seu lugar na família e por sua história escolar...em parte. Em parte, porque o sujeito também contribui para a constituição de todas as situações. (p. 15)

“A superação da alienação, por sua vez, não é um estado absoluto a que se chega de uma vez e para sempre; é uma conquista permanente, e é desigual em relação às diferentes dimensões do sujeito, como, por exemplo, a política, a pessoal, a de trabalho, etc. Por fim isso nos leva a considerar que a identidade do sujeito é multifacética e incoerente, e que os sujeitos são heterogêneos entre si, ainda que pertençam ao mesmo grupo social e se considere que estão determinados pelas mesmas estruturas.” (p. 15)

A situação escolar está constituída de maneira importante pelos conhecimentos que nela circulam: os que se transmitem e os que se constroem.

EscolaEspaço social que deve, legitimamente, transmitir os conhecimentos que para esse fim se legitimaram socialmente.

ConhecimentoElemento constitutivo fundamental da situação escolar, inclusive a partir de sua definição institucional; uma construção histórica de visões de mundo que se apresentam como o verdadeiro para um período histórico determinado; produção social e histórica, que se torna possível a partir de um determinado interesse.

A relação que os sujeitos estabelecem com o conhecimento escolar que deve ser transmitido é uma instância importante, em que por um lado, se define a situação escolar e, por outro, se constitui o próprio sujeito. 

“A importância dos conhecimentos escolares em relação ao sujeito reside em que eles são apresentados como sendo os verdadeiros conhecimentos, implicando uma certa autoridade, a partir da qual definem também implicitamente o que não é conhecimento, e uma certa posição para o sujeito em sua apropriação. Desse ponto de vista, os conhecimentos escolares delimitam o legitimamente cognoscível a partir da experiência escolar.” (p. 20)

O que é a escola e como a constitui e é constituído o sujeito? O problema do conhecimento escolar e seu possível caráter alienante se apresenta como central.

ü  Evita-se a problematização dos conteúdos escolares.
ü  Não se questiona.

O problema educativo centrou-se no método – qual seria a melhor maneira de transmitir os conteúdos?

Se o conhecimento é relativo e implica uma determinada construção social da realidade, é necessário analisar como isso ocorre especificamente na escola:

“O objeto de estudo dessa pesquisa é o conhecimento escolar que se apresenta em classe. Analisou-se ao nível de classe por que um critério básico é o estudo do conhecimento escolar como este efetivamente se apresenta na prática escolar, ou seja, como é construído ou reconstruído pelos sujeitos em suas práticas. O resultado disso é o que os sujeitos vivem como conhecimento. É esse conhecimento, e não o que está colocado nos programas, o que interessa descrever, ou seja, o conhecimento em sua existência social, dadas determinadas mediações institucionais. Mais especificamente, trata-se de descrever a existência material do conhecimento em classe: como é transmitida e apresentada pelo professor e como os próprios alunos participam da construção.” (p. 22-23)

Cada uma das estratégias ou formas de ensino modifica o sentido do conhecimento transmitido.
  
A forma de conhecimento está constituída por duas dimensões: a lógica do conteúdo e a lógica da interação. O estudo apresenta três formas de conhecimento presentes no estudo:

Conhecimento tópico
“(...) está construída analogicamente como a configuração espacial da realidade como espaço (topos), simbolizada mais por meio de termos que de conceitos.” (p. 23)

Ensino – ênfase na correta associação entre termos e lugar (topos) numa determinada sequência.
Aluno – repetição da correta associação entre termo e o lugar que ocupa num esquema.
Conhecimento como operação
“(...) um conjunto de operações para obter resultados no interior de um mesmo sistema de conhecimentos.” (p. 23)

Ensino – aplicação do conhecimento, baseada numa lógica dedutiva.
Aluno – correta aplicação do conhecimento.
Conhecimento situacional
“(...) um conjunto construído em torno do que uma realidade é para um sujeito, a que chamamos de situação.” (p. 23)

Ensino – ênfase está colocada antes na significação de uma realidade para o sujeito e nos usos e valorações sociais do que em definições abstratas.
Aluno – pede-se que pense em determinado recorte da realidade que se apresenta e que procure sua posição ou ponto de vista em relação a ela.

No estudo, a forma de conhecimento como operação mostrou ser a que se apresenta com mais frequência.

O professor é considerado como “aquele que faz a ponte entre os alunos e o conhecimento; tanto porque faz uma reelaboração específica do conteúdo que apresenta, como porque representa a autoridade do conhecimento escolar.” (p. 24)

A forma de conhecimento tópico e a de operação dão origem a uma relação de exterioridade do conhecimento diante do sujeito (alienação no conhecimento). Na forma de conhecimento situacional é permitida uma relação de maior interioridade ente o sujeito e o conhecimento na medida em que se solicita àquele que se aproprie do conhecimento a partir do modo como o significa. 

I.      Os sujeitos e a constituição da situação escolar

Objetivo – descrever como os alunos e os professores participam da constituição da situação escolar.

“Nosso enfoque principal é o aluno. No entanto, na escola não há aluno sem outros alunos e principalmente sem professores. Nem estes nem aqueles estão já constituídos em papéis rigidamente definidos quando se encontram e interagem na escola. Ambos se constituem na relação que estabelecem.” (p. 30)

A.      Elementos estruturantes e a mediação dos sujeitos na situação escolar

“Entre os elementos pelos quais passa a mediação do professor na definição da situação escolar encontra-se, antes de mais nada, o modo como ele define e utiliza o espaço e o tempo escolar.” (p. 30)

Espaço e tempo – Elementos estruturantes

Por que nos ocupamos da análise do espaço e do tempo escolar?

ü  Por considerarmos que o espaço em que se realiza a atividade escolar é uma ordenação estruturada da realidade, em que adquirem significado as relações que ali se estabelecem.

“A disposição física da sala de aula contém uma mensagem implícita sobre as valorações das relações professor-aluno, e portanto também da relação com o conhecimento. Analisar o espaço e seus usos é interpretar as práticas educativas também como um elemento simbólico que silenciosamente estrutura e dá sentido às múltiplas atividades que ocorrem em seu interior.” (p. 31)

“O tempo cumpre um papel simbólico similar. Os tempo que se destina, a diversas atividades, os cortes no tempo e o modo de utilizá-lo vão estruturando significações específicas que cruzam as práticas ali desenvolvidas.” (p. 31)

“Em suma, podemos dizer que o espaço e o tempo como elementos estruturantes têm duplo sentido: funcionam como meios coercitivos ou permissivos no ato educativo, mas, por outro lado, não são suficientes para definir em si mesma a relação com o conhecimento nem a relação entre professor e alunos. Como veremos ao longo desse estudo, essas relações estão definidas pela forma do conhecimento que se apresenta e pela lógica da interação.” (p. 32)

B.      Professores e uso do tempo e do espaço

“Mesmo num processo educativo organizado sob a ideia de pedagogia ativa como este, o papel do professor é central, e é o que lhe dá o caráter de professor.” (p. 36)

Em uma situação...
“São os alunos que interrompem a professora para fazer perguntas sobre o conteúdo, e não o contrário, como é a tendência que observamos na turma da Escola. O tempo é manejado em grande parte pelas crianças. Este é interno à tarefa, ou seja, acaba quando a tarefa termina. Não é fixado externamente (dentro do âmbito de duas horas e meia diárias). São as crianças que interrompem o tempo da professora. Ou seja, manejam uma parte importante de um dos elementos estruturantes da realidade da sala de aula – o tempo.” (p. 37)

“(...) é importante assinalar que a professora não tem um lugar privilegiado que a diferencie perante as crianças. Seu uso do espaço não a coloca num lugar central, referente único e principal para todos os alunos.” (p. 38)

“(...) esses elementos que estruturam a situação na classe permitem, ao mesmo tempo, a expressão das singularidades dos sujeitos que nela interagem.” (p. 38)

ü  Manejo interno do espaço e do tempo segundo as necessidades inerentes à tarefa, que permite a expressão das singularidades e da heterogeneidade em seu uso.

Em outra situação...
“O tempo que está obrigatoriamente destinado ao aprendizado é controlado pelo professor, os alunos devem se sujeitar ao ritmo que o professor impõe. Para eles é algo determinado externamente, e em geral está marcado pela pressa, pela rapidez. O que se objetiva nessa situação é que o tempo é algo homogêneo, ou seja, deve ser o mesmo para todos.” (p. 42)

ü  Manejo do tempo e do espaço antes como uma determinação externa que é imposta à tarefa, circunscrevendo-a. O tempo e o espaço são considerados como algo homogêneo, igual para todas as crianças, o que supõe necessidades iguais no processo de apropriação de conhecimentos e respostas iguais.

C.      O outro. Afazeres dos alunos

Aumento do ruído na sala – “violência” ou “desordem”

“A violência é uma das formas através das quais os alunos se relacionam. A agressão entre eles não é excepcional, faz parte da vida cotidiana na sala de aula. Trabalho escolar e violência marcam o ritmo da aula e aparecem como equivalentes nesta situação.” (p. 43)

“A violência que se expressa na sala faz parte de um modo de ser, é uma forma de comunicação entre os alunos.” (p. 44)

Socialização secundária -  interação constante entre os alunos, mesmo quando fazem a tarefa escolar. “Compartilham opiniões e conhecimentos sobre o mundo que os rodeia e sobre eles mesmos. Geram uma visão de mundo compartilhada que vai constituindo seu senso comum. Ao encontrar-se numa situação comum utilizam uma linguagem particular carregada de subentendidos e de evocações de situações.” (p. 48)

“Suas opiniões, suas conceituações acerca de determinada situação, seus comentários fazem parte da geração de conhecimentos que têm lugar na escola sobre conteúdos que não tem relação direta com os conteúdos escolares. Essa socialização entre colegas constitui um espaço importante do processo de ensino e aprendizagem que ocorre na escola, e nos mostra como o processo de apropriação de conhecimentos dos sujeitos envolvidos na situação escolar é social e permanente.” (p. 48-49)

“Ambas as atitudes que esse evento indica – pedir tarefa e insistir em fazer sozinho o exercício – denotam uma relação de auto-regulação dos alunos com o trabalho. Os alunos não tomam essas iniciativas por encontrar-se sob o controle da professora; elas são geradas autonomamente, no interesse particular deles pelo trabalho.” (p. 54)

“Estes (sujeitos alunos) fazem parte de um processo de construção que é prévio à escola, que a ultrapassa, e que está integrado pelo que os sujeitos vivem e pensam dentro e fora dela. Tal processo de construção está organizado a partir do sujeito e está diversamente motivado, por necessidades que às vezes são só de conhecer e que nem sempre são pragmáticas. Às vezes é uma tentativa de explicar uma situação juntamente com outros. Essas tentativas de explicação, essas tentativas de visões do mundo que vão se confrontando com outras, constituem os conhecimentos que o grupo constrói. Cada grupo social pode produzir conhecimentos específicos relacionados à situação que compartilham, e que ao mesmo tempo estão formados pelos conhecimentos genéricos da humanidade, transmitidos de um modo específico em cada situação.” (p. 55)

“Os conhecimentos que esses sujeitos constroem são complexos, e com frequência mostram a apropriação de um conhecimento socialmente construído, em seu próprio meio social; ao mesmo tempo, constituem o modo pelo qual eles problematizam e explicam a si mesmos seu mundo.” (p. 56)
“Fazer uma pergunta supõe um conjunto de conhecimentos que tornam possível formulá-la, ou seja, uma pergunta é uma síntese de conhecimentos postos num momento dado em determinada direção. Nesse sentido, quem pergunta de certo modo antecipa uma resposta. Um sujeito interroga o mundo ao interpretá-lo e, ao fazê-lo, está construindo conhecimentos. (...) O sujeito conhece seu mundo através das questões que lhe formula, e estas são possíveis pelos conhecimentos prévios, que participam de modo muito diverso da constituição da pergunta: de alguns se tem consciência e de outros não, alguns são argumentações racionais completas e outras são evocações, fragmentos, lembranças, etc. Esse processo de construção de conhecimentos, que supera e inclui a escola, é um processo eminentemente social, se faz sempre com outros, que formam o mundo para o sujeito; ao mesmo tempo, é uma atividade inerente ao sujeito, por ser através dela que se constitui como tal.” (p. 58-59)

ü  A construção de conhecimentos dos sujeitos se dá em suas interações informais ou espontâneas entre si e com o seu mundo.

“O sujeito constrói e reconstrói – tal como faz no mundo em geral – o conhecimento que lhe é apresentado na escola. Como vimos, esse conhecimento é reelaborado pelo sujeito ao relacionar-se com ele, a partir de seu próprio universo de significações. Nesse sentido podemos dizer que entre o que se ensina e o que se aprende existe uma incógnita, constituída pelos múltiplos processos de apropriação que cada sujeito realiza. Nenhum conhecimento tem um ponto de partida absoluto, já que o conhecer supõe fazê-lo a partir de outros conhecimentos. Por isso, entre outras coisas, cada aluno faz uma reelaboração singular do conteúdo, cada qual o interpreta e constrói segundo seus conhecimentos.” (p. 62)

Os alunos participam constituindo a situação escolar por intermédio de várias dimensões:

  • Através das formas de comunicação, verbal e não-verbal, que se desdobram constantemente na sala de aula. A violência é uma forma de comunicação não-verbal; é uma forma de comunicação legitima e vital, que implica contato físico e expressão das emoções. O relax é uma forma de comunicação lúdica verbal. Revela os interesses, as preocupações, o senso comum dos sujeitos que, ao confrontá-los, geram visões de mundo compartilhadas.
  • Os sujeitos às vezes constroem suas relações entre si e com a tarefa independentemente da presença ou das prescrições da professora. Essa autonomia se expressa de modo especial no que temos descrito como trabalho escolar (os alunos encaram a tarefa como um trâmite, como uma série de coisas que é preciso fazer para poder passar ao que realmente importa, como por exemplo, o recreio), ajuda mútua (ajuda gratuita, não há nenhuma prescrição nem exigência de fazê-lo, não há prêmio nem castigo, envolver-se na tarefa do outro e ensinar-se mutuamente) e acusar-se (pedido que as crianças fazem à professora para que intervenha em suas ações, recurso formal porque as crianças já resolveram o conflito no momento de acusar). As crianças se relacionam segundo seus próprios interesses, assumem a tarefa como um empreendimento próprio, ajudam-se entre si na tarefa, tal como trocam conhecimentos sobre conteúdos não-escolares por iniciativa própria; e estabelecem uma ordem em suas relações, gerada por eles mesmos.
  • A atividade cotidiana das crianças está perpassada pelo que chamamos de construção de conhecimentos. Processo de construção que é prévio à escola, que a ultrapassa e que está integrado por aquilo que os sujeitos vivem e pensam dentro e fora dela. Conhecimentos denominados da vida cotidiana, que não se referem apenas ao uso do mundo, mas também à explicação do mundo, e que vão conformando os conhecimentos que um grupo constrói são formados pelos conhecimentos específicos relacionados com a situação que compartilham e pelos conhecimentos genéricos da humanidade. Os conhecimentos que as crianças constroem são complexos. A construção de tais conhecimentos se dá mediante a atividade de questionamento que o sujeito faz de seu mundo, a partir de uma síntese particular dos conhecimentos prévios que o sujeito articula num momento dado em determinada direção. Esse processo social ocorre com outros sujeitos, mas também é um processo singular (cada aluno reelabora os conteúdos acadêmicos, a partir de sua própria singularidade – sujeito sempre ativo e construtor de sua relação com o mundo).


II.   Relação dos sujeitos com o conhecimento

Um dos elementos mais importantes na constituição do dia-a-dia escolar é o conhecimento que ali se transmite. Esse conhecimento se constitui pelo uso dos programas e livros escolares e pelo conjunto não-homogêneo de práticas que tanto docentes como outros constituem em sua relação.

“Os conteúdos acadêmicos são apresentados como verdadeiros e, e nesse sentido, pode-se dizer que transmitem visões de mundo autorizadas (com autoridade), as quais constituem o terreno em que os sujeitos realizam suas apropriações, seja aceitando, rejeitando ou construindo conhecimentos. A importância da relação dos sujeitos com os conteúdos escolares reside, justamente, em que estes são apresentados como os verdadeiros conhecimentos implicando uma certa autoridade por meio da qual, por sua vez, definem implicitamente o que não é conhecimento válido. É por força da legitimidade dos conteúdos acadêmicos transmitidos que se torna difícil, tanto a professora como a alunos, identificar como conhecimento válido seus próprios conhecimentos marginais, também sempre presentes na sala de aula. ” (p. 67-68)

“(...) o lugar onde o conhecimento se transforma numa particular explicação da realidade é o sujeito, essa concreção, portanto, não é estável, homogênea, unívoca para toda situação escolar. A transformação (mudança de forma) do conhecimento tem relação com a história dos professores, como professores e como mulheres e homens; e com a história dos alunos no mesmo sentido; histórias que se colocam em jogo na lógica de interação na sala de aula.” (p. 68)

“Os conhecimentos escolares adquirem existência social concreta através de uma série de mediações. Em primeiro lugar, são um recorte e ordenamento particular da realidade, fruto de várias mediações institucionais que se realizam por uma série de decisões e discriminações, sobre um conjunto específico de conhecimentos pretensamente científicos, do que a escola deve transmitir, i.e., daqueles conhecimentos incluídos nos planos e programas.” (p. 68)

O conteúdo se transforma na forma – o conteúdo não é independente da forma pelo qual é apresentado. A forma tem significados que se agregam ao conteúdo transmitido, produzindo-se uma síntese, um novo conteúdo. A forma como se apresenta os conteúdos, afeta seu significado; eles são reelaborados por professores e alunos em cada ocasião (são reelaborados ao serem transmitidos, a partir da história dos professores e de sua intenção de torná-los acessíveis aos alunos. Do mesmo mofo, são reelaborados também pelos alunos a partir de suas histórias e suas tentativas de aprender a lição.

Como resultado, e ao contrário do que se supõe, na escola se realizam várias formas de conhecimento: conhecimento tópico, conhecimento como operação, conhecimento situacional. 

Duas formas de relação com o conhecimento: relação de exterioridade e relação de interioridade:

  • “Produz-se uma relação de exterioridade quando o sujeito deve relacionar-se com um conhecimento, que lhe parece problemático ou inacessível. Nesses momentos o sujeito requer pistas que lhe deem acesso à resposta certa, processo que se toma por uma apropriação do conteúdo explícito na lição, produzindo uma simulação da apropriação do conteúdo que deixa o sujeito em posição de exterioridade.” (P. 72)
  • “Produz-se uma relação de interioridade com o conhecimento quando o sujeito pode estabelecer uma relação significativa com ele.  Isso se produz quando o conhecimento que se apresenta inclui e interroga o sujeito. Este deve, então, referir-se a si mesmo, deve procurar seu ponto de vista. O sujeito se apropria de um conteúdo que requer sua (do sujeito) elaboração.” (p. 72) A relação se torna significativa, ou seja, com valor intrínseco para o sujeito.

Sujeito Professor – aquele que faz a mediação entre o conhecimento e os alunos, em dois sentidos: por um lado, aquele que faz uma reelaboração particular do conhecimento que apresenta aos alunos e, por outro, aquele que representa a autoridade do conhecimento escolar. 

Diferentes formas de conhecimento...

v  Conhecimento tópico

Forma de conhecimento orientada para a identificação tópica da realidade. Trata-se sempre de dados que não admitem ambiguidades e que podem ser nomeados com precisão.

Tópico – relativo a lugar; que se refere direta e precisamente àquilo que se trata. 

A ênfase está colocada antes na nomeação correta do termo isolado do que em sua utilização em determinada operação.

As respostas são únicas, precisas, textuais. Essa forma de conhecimento fixa formas precisas de respostas, já que representam a realidade conformada por elementos abstratos, com uma localização fixa no espaço. Excluir a explicitação da elaboração dos alunos é constitutivo dessa forma de conhecimento, ou seja, nega-se nos fatos a existência de tal elaboração.

Nesta forma de conhecimento o que se enfatiza é a localização espacial de partes que têm um nome específico. A apropriação consiste, então, em poder recordar e nomear as partes numa determinada ordem. As perguntas não admitem a explicitação das elaborações pessoais que os alunos podem estar fazendo. Para responder não é preciso fazer relações nem aplicar conhecimentos, apenas lembrar e nomear termos numa determinada ordem (ordenamento de lugares).

“A forma de conhecimento que denominamos tópica estrutura-se como um ordenamento abstrato de lugares, em que o próprio conteúdo perde sentido em função da forma. Esse tipo de conhecimento apresenta o paradoxo de que, presumindo dar conta do todo – ou o que denominamos pretensão de delimitar todo o saber sobre um tema –, fragmenta a realidade. Dela dá-se conta utilizando termos com relações de contiguidade no espaço, no qual se situam os elementos do todo.” (p. 80)

v  Conhecimento como operação

Essa forma de conhecimento se apresenta, preferencialmente, como a aplicação de um conhecimento geral altamente formalizado a casos mais específicos. Baseado numa lógica dedutiva, o eixo estruturante de seu raciocínio é o seguinte: conhecidas certas caraterísticas gerais, estas podem ser aplicadas a situações específicas para se obter um produto (de conhecimento).

No ensino, a ênfase é posta na apreensão da forma, da estrutura abstrata, independentemente do conteúdo. O conhecimento, então, se apresenta como mecanismos e instrumentos que permitem pensar. É em função desse objetivo que a presente forma de conhecimento se introduz como essencialmente oposta a memorização; reconhecer, portanto, significa a utilização correta de mecanismos e instrumentos. A ênfase na replicabilidade resulta, por exemplo, nos repetidos exercícios a que os alunos são submetidos – aplicação eficiente e rápida.

Aplicação de perguntas-chave para se obter um resultado. A ênfase está posta na rapidez e segurança das respostas. Isso supõe a apropriação por parte dos alunos, desses pares relacionados e sua rápida associação durante a lição, na forma de estímulo-resposta. Os alunos estão impelidos a pensar nesses termos pare ter êxito; isso implica deixar de lado as elaborações próprias que o próprio conteúdo pode provocar.

Tem-se a intenção de permitir o aluno pensar; apresenta-se sob o lema do raciocínio versus a memorização.

“A lógica do conteúdo é muito formal e abstrata, e a da interação, insuficiente.” (p. 93)

v  Conhecimento situacional

Interesse de conhecer – no sentido inteligível – uma situação. Entendemos por situação uma realidade que se cria em torno da presença de um sujeito. A situação faz referência a um conjunto de relações a partir do sujeito, e o envolve nelas.

O aluno é posto diante de uma situação, diante de um conjunto de elementos relacionados a partir do sujeito, que apresenta uma realidade de algum modo conhecida para este e no qual se ligam e articulam novos conhecimentos – relação entre um conceito abstrato e uma realidade cotidiana.

A significação é o eixo central, então, a resposta não é única. A ênfase é colocada na elaboração do aluno.

Valor intrínseco para o sujeito aluno – permite a este situar-se no mundo ou situar-se diante do mundo. Transita do conceitual ao pessoal.

“(...) entre o que se ensina e o que se aprende está o vasto e desconhecido processo de apropriação do transmitido que cada sujeito realiza a partir de seu universo de significações pessoal e coletivo.” (p. 105)

Concluindo

1. Relação com o conhecimento tópico. Quando o conhecimento vem a ser algo alheio

  • Relação de exterioridade ou alheia ao sujeito;
  • Perguntas unidirecionais – é apenas o professor que as faz ou quem marca a dinâmica e a direção da relação;
  • O conhecimento é textualizado e saber significa lembrar do modo exato.
  • Lógica: o fato de que o professor diga o conteúdo será suficiente para que seja aprendido pelos alunos; porque o ouvem dizer, ou porque algum dos alunos o diz. Supõe-se que a soma de respostas ditas conformam o conhecimento que todos têm. O que importa é que o conteúdo fique dito, por quem quer que seja (professor ou aluno).
  • Relação linear e contínua entre ensino e aprendizagem – Supõe-se que o que se ensina se aprende;
  • O importante é a versão que o professor tem do conteúdo;
  • Aluno – contemplação de uma ordem já estabelecida e apresentada como verdadeira; apreender uma ordem externa e a reproduzi-la.


2. Relação com o conhecimento como operação. Quando o conhecimento de qualquer modo vem a ser algo alheio

  • A lógica de ensino é a de que os alunos raciocinem, pensem por si mesmos, ultrapassem a repetição ou a memorização – o pedido para que pensem é um discurso abstrato, não tem significado para os alunos; 
  • Relação com o conhecimento mecânica, exterior e bem-sucedida;
  • Operar com o conhecimento não supõe, de modo evidente, a construção dele pelo sujeito;
  •  Coerção para subscrever uma lógica exterior a ele de modo imediato e irreflexivo, implicando a constituição de um sujeito aparentemente racional.

3. Relação com o conhecimento situacional. Quando o conhecimento se torna significativo

  • Relação mais significativa entre o conhecimento e o sujeito, que o inclui e o interroga;
  • O professor pede ao sujeito que se inclua, se interrogue e que faça pondo explicitamente em jogo seus conhecimentos anteriores;
  • Valorização social dos conhecimentos;
  • O professor expressa sua opinião como opinião e não como verdade, e, ainda que a opinião do professor tenha autoridade como verdade, esse modo de apresentá-la abre algum espaço para a elaboração do aluno;
  • A relação do conhecimento e sua apropriação se dá também entre pares, e não só na relação professor-alunos;


“(...) o conhecimento escolar é apropriado e significado numa relação social. Não é uma coisa que se transmite inalterada: transforma-se em sua circulação. Os que o transformam são os sujeitos.” (p. 124)
“Assim, a escola, longe de ser um lugar de práticas homogêneas, se constitui, antes, como um lugar de práticas contraditórias.” (p. 124)

“(...) o conhecimento escolar é ressignificado pelos alunos nesse vasto e heterogêneo mundo de valorações que são os conhecimentos marginais que eles estabelecem ou reconstroem. Os sujeitos têm um modo singular de apropriar-se do conhecimento que tem a ver com seus conhecimentos prévios e com as suas histórias; por isso não se pode pretender uma relação linear entre o que se ensina e o que se aprende” (p. 125) – singularidade da apropriação.

EDWARDS, Verónica. Os sujeitos no universo da escola. São Paulo: Ática, 1997.

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